domingo, outubro 15, 2006

Lady in the water de M. Night Shyamalan

O homem merece ser salvo?
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Gosto de filmes assim, filmes (epopeicos) que nos fazem voltar a acreditar na grandiosidade do ser humano, na possibilidade do conto de fadas acontecer no sítio mais comezinho, com as pessoas mais banais, impondo-se contra a vida snob, pessimista e previsível. Não é à toa que, neste filme, o único personagem a merecer morrer é também o mais enfastiado com a vida e com a arte, um crítico de cinema preso na convicção de já nada ser capaz de lhe ensinar alguma coisa, preso no cânone e no estereótipo, os quais afinal acabam por o surpreender da forma mais cruel, matando-o. No meio desta atmosfera artística tão descrente, é redentor vermos emergir um filme assim, fazendo-nos acreditar que todas as pessoas, por mais (a)normais ou estranhas que aparentem ser, são na verdade portadoras de um sentido imprevisível até para elas próprias, uma missão longe dos estereótipos e contra a maldade do mundo. É de novo a possibilidade renascentista do homem como Deus, imortal, do homem que merece ser salvo.
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É também esta crença no ser humano que me faz gostar da poesia de Jorge de Sena. Convoco aqui um excerto de um dos poemas dele que mais gosto, chama-se "A Morte, o Espaço, a Eternidade" e foi escrito em 1/4/1961, sábado de aleluia (dia da ressurreição de Cristo):
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"De morte natural nunca ninguém morreu.
Não foi para morrer que nós nascemos,
não foi para a morte que dos tempos
chega até nós esse murmúrio calvo,
inconsolado, uivante, estertorado,
desde que anfíbios viemos a uma praia
e quadrumanos nos erguemos. Não.
Não foi para morrermos que falámos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.
Não foi para morrer que nós sonhámos
ser imortais, ter alma, reviver,
ou que sonhámos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos.
Não foi. Quando aceitamos como natural,
dentro da ordem das coisas ou dos anjos,
o inomável fim da nossa carne; quando
ante ele nos curvamos como se ele fôra
inescapável fome de infinito; quando
vontade o imaginamos de outros deuses
que são rostos de um só; quando que a dor
é um erro humano a que na dor nos damos
porque de nós se perde algo nos outros, vamos
traindo essa ascensão, essa vitória, isto
que é ser-se humano, passo a passo, mais."
(...)