quinta-feira, agosto 31, 2006

31 de Agosto: o princípio do fim do Verão


(Burgo, Lousã)

A Ideia de Europa - George Steiner


Esta coisa da identidade sempre me deu que pensar.
"Quem sou eu" é a interrogação que me acompanha desde sempre e a pergunta-de-fazer-doer-a-cabeça mais remota de que tenho memória. Outras houve como "porque é que o Gabriel tem um cão e nós não" ou mais recentemente "porque é que nunca arranjo lugar para estacionar o carro" mas o mais provável é que se vão relativizando com o passar dos anos e não subsistam como a questão da identidade, do abismo que é pensar no que me define em relação ao Outro, enquanto pessoa, enquanto portuguesa, enquanto europeia (e por aí adiante). No que respeita a este último lugar, George Steiner n´ A Ideia de Europa ajudou-me (de uma forma muito prazeirosa) a arrumar razões.
Neste pequeno ensaio, George Steiner percorre os 5 axiomas que julga poderem definir a Europa relativamente ao resto do Mundo (especialmente em relação aos EUA). Um desses axiomas é a soberania da lembrança, "as ruas e praças nomeadas segundo estadistas, cientistas, artistas e escritores do passado". Há um in memoriam constante nos espaços que habitamos, "verdadeiras câmaras de ressonância de feitos históricos". E aqui a oposição com os EUA, onde as ruas são designadas ora por números, ora por nomes de árvores, raramente referenciando o passado. Não vemos ali esta soberania da lembrança que tanto nos caracteriza, esta vontade de preservação da memória que nos leva a reconstruir cidades destruídas tal e qual como foram outrora (casos como Varsóvia, Dresden ou Dubrovnik) . Muito embora o renascimento fac-similado nunca seja a mesma coisa:
*
"Há algo de errado em toda aquela correcção. Como se mesmo as perspectivas de profundidade fossem meras fachadas. É muito difícil exprimir através de palavras a calidez, a aura que o tempo autêntico, o tempo enquanto processo vivido, confere ao jogo da luz sobre a pedra, os pátios, os telhados. No artifício do recontruído, a luz tem um travo a néon."
*

quarta-feira, agosto 30, 2006


A grande descoberta do dia: as emissões do programa Câmara Clara, todas on-line aqui.
Câmara Clara passa às sextas-feiras (22,30h) na Rtp2 e escusado será dizer que a maior parte das vezes não consigo ver. Problema solucionado. Agora tenho Paula Moura Pinheiro (que só peca por excessiva verborreia) e todos os seus convidados (exemplos: Abel Barros Baptista, Richard Zimler, Pedro Rosa Mendes, Inocência Mata, Nuno Crato, Ricardo Araújo Pereira ou Francisco José Viegas) à distância de um clique.

segunda-feira, agosto 28, 2006

Autobiografia

(gravura de Günter Grass; a faceta de artista plástico)
O que mais quero reter de toda esta história do Günter Grass ter andado uma vida toda a pôr a Alemanha diante do seu passado nazi e depois escrever na sua Autobiografia que quando tinha 17 anos pertenceu às SS, anda muito longe do questionamento da validade da sua obra que esta revelação veio pôr à prova.
O que quero reter é sobretudo o que Günter Grass entende que deve existir numa autobiografia para que esta se revele necessária. Diz ele, como polémico que assume ser, que quando alguém decide escrever uma autobiografia, tem obrigatoriamente de se expor, nem que seja parcialmente, porque se isto não acontecer está-se a fazer uma espécie de auto-celebração.
Digo mais um pouquinho: a "taxa de bazófia" que tanto nos caracteriza diminuiria se cada um de nós, de cada vez que falasse de si, tivesse de revelar um pouco das suas fraquezas.
(isto tudo porque me irritou um "pintas" que ouvi ainda há instantes a gabarolar-se)

sexta-feira, agosto 25, 2006

Uma das poucas coisas que sei de cor

Houve uma altura na minha vida em que sabia dizer de cor Avé-Marias, Pais-Nossos, Salvé-Rainhas, os Mandamentos e outras tantas coisas das quais já não me recordo sequer o suficiente para as conseguir nomear. Hoje em dia, especialmente em alturas de aperto (que é quando mais me apraz rezar), por muito que me esforce, não me consigo lembrar do que vem a seguir a "bendito é o fruto do vosso ventre: Jesus". Que a minha mãe não saiba. Ainda me lembro da lagrimazinha ao canto do olho, quando pela primeira vez me ouviu debitar à sua frente o Pai Nosso, sem um engano, num esmero de criança concentrada e devota. Era um orgulho, embora na verdade, de tanto repetir estas orações na infância, as palavras tenham acabado por perder a sua lógica, transformando-se num amontoado de sons ocos que repetíamos em coro, durante a Catequese. Talvez por isso se tenham evaporado tão facilmente da minha memória.
Acho até que se algum dia me vir num aperto dos grandes, daqueles que levam as pessoas a levantar os olhos para o céu e rezar, o mais provável é que me ocorra pensar em Deus, dizendo este poema, que é uma das poucas coisas que sei de cor:
**
Casa
*
Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.
*
Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.
*
Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...
*
Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.
David Mourão Ferreira

quarta-feira, agosto 23, 2006

Pensamentos Ilustrados

S. Cristóvão, Orazio Borgianni

O que tem de fantástico um livro é que através dele, e sem grandes fadigas, acedemos a anos de aprendizagem e reflexão. Bernard de Chartres (filósofo e monge do séc.XII) tem uma frase que descreve muito bem esta relação entre leitor e escritor: "Anões empoleirados nos ombos de gigantes". E desde que vi este quadro de Orazio Borgianni representando S. Cristóvão a carregar o Menino Jesus, esta passou a ser a minha ilustração para esse pensamento.
A memória tem destas coisas.

Sábado de manhã, no Cabeleireiro do meu Bairro

No Cabeleireiro do meu bairro faz-se de tudo um pouco: arranjam-se cabelos, mãos, pés, depilam-se pernas, virilhas, buços e sobrancelhas, fazem-se piercings e claro, sabem-se as fofocas mais quentes. Esta última tarefa é particularmente exigente, carecendo absolutamente dos funcionários que ali trabalham, um permanente dar à língua e um frenético receber de chamadas (a informação tem de vir de algum lado). O Dádo é um dos mais concorridos, o seu telemóvel toca de 15 em 15 minutos (palavra!) e ele lá vai fazendo malabarismos com o secador, a escova de enrolar e os cabelos das clientes, tudo para conseguir tirar o telemóvel (finalmente) do bolso das calças que estão para lá de justas, ó Dádo essas calças estão mesmo é apertadas!
Da última vez que lá fui, o Dádo recebe uma mensagem que deixa as "mininas" com a pulga atrás da orelha "Qué que cê tá sorrindo, Dádo? Que mensagem cê tá lendo? Deixa eu ver, deixa eu ver!". Sem nunca largar o secador, a escova e os cabelos que tinha em mãos, Dádo inclina a anca, oferecendo o bolso com o telemóvel à manicure Dirce "Puxa Dádo, que calça apertada, eu heim" ... Dirce demora algum tempo a ler a mensagem, depois lança para Dádo um olhar cobiçoso "Mas qui lindo! ... deixa eu ler prás mininas, deixa Dádo?... Então eu vou ler, ouçam só o que enviaram para o Dádo, cês não vão nem acreditar nesta boniteza: vai chegar um dia em que você vai pedir para eu escolher entre a minha vida e você; e eu vou ter que dizer que escolho minha vida e você vai-se afastar de mim sem saber sequer que minha vida é você!... Não é lindo gente?...Puxa que coisa mais linda, preciso mandar isto pra alguém, a quem é qui será que eu vou enviar isto?"
E o rosto de Dirce só fica sério quando, depois de muito pensar alto, acaba por dizer "Puxa Dádo, não tenho ninguém pra quem enviar isto!"

terça-feira, agosto 22, 2006

Miami Vice (Michael Mann)


Pensei que Miami Vice fosse um filme de porrada, com gajos latinos montados nas suas altas máquinas (descapotáveis, motos, lanchas, aviões a jacto), grandes mansões, muito neon, muito gel naqueles cabelos. Afinal encontrei mais do que isso.
Guardei um filme em que o espaço é também personagem; e sobretudo um filme cujo ritmo depende mais das relações amorosas (é nelas que está o pathos) e menos da "caça aos maus". Um filme em que o amor e o ciúme não são mencionados, são pressentidos em discretos olhos com lágrimas, de Isabella enquanto faz amor com Sonny e de José Yero, enquanto observa Isabella e Sonny a dançar, adivinhando entre os dois algo mais sério do que um encontro casual.
No essencial, a espontaneidade com que as relações se vão construindo à nossa frente, sem embelezamentos forçados; a intimidade mostrada sem enfeites na forma natural com que duas pessoas que se amam partilham o chuveiro. Só temos a certeza daquilo que já desconfiávamos (que Sonny e Isabella se amam) quando os vemos entrar juntos no chuveiro, tal como já havíamos visto Trubbs e Trudy.
Gostei.

A história de Pedro e Inês

A morte de Inês de Castro, Karl Briulov
(exposição temporária Rússia!, Guggenheim, Bilbao)

Em Abril estive em Bilbao e encontrei por lá este quadro, que muito me espantou, mais pelo tema do que pela sua beleza. Chama-se A morte de Inês de Castro e o mais surpreendente é ter sido pintado por um russo chamado Karl Briulov, que segundo vim a saber, foi dos primeiros pintores russos a ter fama internacional (viveu entre 1799 e 1852).
Lembrei-me disto porque ontem alguém dizia na televisão que a história de amor entre Pedro e Inês tem ainda maior potencial trágico do que a de Romeu e Julieta.
O que só prova que mais do que um herói, às vezes faz mais falta um Shakespeare.

segunda-feira, agosto 21, 2006

Il Mare




"Sung-Hyun, há três coisas que não podem ser escondidas: a tosse, a pobreza e o amor... quanto mais tentamos escondê-las, mais elas aparecem."

do filme coreano Il Mare, realizado por Hyun-Seung Lee (2000)

domingo, agosto 20, 2006

Craigie Horsfield na Gulbenkian


'The work I make is intimate in scale but its ambition is, uncomfortable as I find it, towards an epic dimension, to describe the history of our century, and the centuries beyond, the seething extent of the human condition."
Craigie Horsfield

Neste domingo soalheiro, fui até ao CAMJAP/Fund. Calouste Gulbenkian onde até Setembro estará patente a exposição "Relation", que reúne 35 anos de trabalho do fotógrafo inglês Craigie Horsfield.
Há nas suas fotografias um magnetismo de pintura clássica, uma aura de História e de epopeia; encontrei esse magnetismo nas poses das pessoas fotografadas, no claro-escuro das fotos a preto e branco (geralmente de grandes dimensões), na associação imediata das fotografias que compôem "Irresponsible Drawings" aos bodegons (ou naturezas-mortas) do período barroco.
De Craigie Horsfield vim a descobrir algumas coisas, entre as quais o seu interesse pelas relações que se estabelecem entre as pessoas. É, aliás, o respeito por essas relações que o leva a estabelecer estratégias prévias de aproximação (embora discretas e naturais) com os ambientes a fotografar, donde advém que tanto os objectos, como as paisagens como sobretudo as pessoas das suas fotos pareçam encerrar interioridades misteriosas e densas. Talvez por isso, assim que vi a foto acima reproduzida ( e as outras, da mesma série) vieram-me à ideia os nossos "Painéis de São Vicente", cujo grande encanto reside precisamente na carga expressiva e individualizante dos retratados.
Depois da exposição (cuja entrada aos domingos é gratuíta), fomo-nos esparramar na relva dos jardins, que estão mesmo muito bonitos, com muitos patos destemidos por ali à solta, sem medo algum das pessoas, impondo os seus grasnares, a água a afirmar-se mais no espaço, com um caudal que não me lembro de ter observado tão forte da última vez que ali estive, os cafés muito aprazíveis, sobretudo o situado no edifício do Museu, com a sua esplanada rente à relva (pena fecharem tão cedo...)

Basta Café-Jardim


Às vezes penso que a Lisboa que me é mostrada não é a Lisboa que realmente existe. Há uma Lisboa privada, uma cidade por dentro da cidade, a Lisboa dos pátios interiores. Pressinto-os nas verduras que galgam os muros, vislumbro-os entre portões mal fechados e algumas vezes mais afortunadas, tenho o prazer de os desfrutar. Foi o que me aconteceu hoje em que tive o prazer de descobrir o Basta Café Jardim, no n.º 175 da Rua Dona Estefânia.
Um livro, uma boa companhia, chá servido em louça branca Spal, torradas com manteiga e compota ... depois foi só entardecer juntamente com as árvores do pátio (algumas com troncos difíceis de abraçar), sentada na varanda em ferro estilo Arte Nova, costas voltadas para as salas de tectos altos onde o espaço deste Bar-Restaurante se prolonga. E foi um espírito do séc. XIX, um espírito romântico que se apoderou de mim nesta tarde, que me fez pousar a Brasileira de Prazins, percorrer aquelas salas forradas a madeira escura e a veludo enramalhado para soltar os dedos num piano que por ali encontrei (à porta das casas-de-banho!), eu que nem sei que nota vem a seguir ao Ré.
Vou querer voltar.

sexta-feira, agosto 18, 2006

Vizinhança

(a fantástica Nina no blog da Dina)
Na minha rua vive uma senhora dos seus sessenta anos que passa o dia à janela. Arranja-se muito bem arranjada e põe-se à janela. Talvez esteja à espera de uma serenata, talvez seja apenas cusca, talvez seja apenas só. Não sei. Só sei que de manhã vou trabalhar e ela está à janela, à tarde venho do trabalho e ela está à janela, à noite chego do cinema e ela à janela ... até já estranho se não a vejo lá.
Penso que ela não deve ter muito para ver, talvez apenas uma animaçãozita de vez em quando, uma briga de namorados, o eléctrico que não passa por causa dos carros mal estacionados, uma manifestação a caminho da Assembleia da República ... pouco mais (e daí não sei, um dia ainda hei-de experimentar passar o dia à janela).
Acontece que ultimamente, eu tenho sido a animaçãozita do dia da minha vizinha, pelo menos um "pico de animação" no seu dia. Anteontem, quando vinha do trabalho, vi um cão que se parecia imenso com a cadela dos meus pais quando era mais novita. A nossa cadela chama-se Nina e na família temos uma "voz de Nina", uma entoação ridícula que utilizamos quando falamos com ela, quase como se fosse um bébé. Não resisti, o cão estava a uma distância razoável de mim e como não houvesse ninguém por perto, estive nisto uns bons longos 5 minutos: "pequena Niiina, piquenitaaa, fofiiiinha! Nina! Nina! Oooooh, fantástica Niiiiina!" Como a cadela não me ligasse nenhuma (não era a Nina, porque se fosse já estaria a abanar a cauda), resolvi ir à minha vida e conforme me viro, dou com os olhos da tal vizinha, uns olhos que não se riam, nem sequer sorriam, estavam apenas espantados a olhar para mim.
Ontem, já esquecida da cena do dia anterior, faço o meu percurso habitual, na vinda do trabalho. E de repente, tive que parar. O raio! Então não é que uma plantazeca, um género de trepadeira, que nasceu encostada a um prédio quase em frente ao meu, está enorme, verdadeiramente está do tamanho de uma árvore?! Mas como é que eu nunca reparei nisto a crescer? E devo até ter falado alto enquanto olhava e voltava a olhar a planta, de todos os ângulos, a boca aberta, a coçar a cabeça, mas que bom, algum verde no meio dos prédios, "esqueira" que não a cortem. E quando me cansei de mirar e me viro, lá estava ela, a vizinha outra vez a olhar para mim, muito espantada como quem pensa que "esta criatura passa-me aqui todos os dias à porta, mas o que é que lhe deu agora para se pôr a falar com a verdura? Tá maluquinha". Dessa vez, não consegui, tive de me esconder, perdida de riso....
Hoje (e eu tenho de escrever isto senão esqueço-me) encontrei-a na rua! Encontrei-a na rua, a andar e tudo! Não podia acreditar, tive de ficar um bom bocado a olhar, a ver se era mesmo ela. Era mesmo ela e de tal forma abismada a devo ter olhado que certamente a deixei outra vez a cismar sobre a minha maluquice.


quinta-feira, agosto 17, 2006

Documentário sobre Lídia Jorge


No passado dia 31 de Julho, o Biography Cannel exibiu um documentário sobre a vida e obra da escritora portuguesa Lídia Jorge e durante 50 minutos fiquei colada à televisão.
Cada vez me acontece mais isto: gostar da obra de determinado escritor e detestar a pessoa de carne e osso. Tal não me aconteceu com Lídia Jorge. A figura não me desiludiu, nem pelo que disse nem pela impressão não verbal que me causou: a forma como fala, como se senta de costas direitas, rigorosa, na ponta de um sofá, como ocupa o espaço numa sala cheia de livros, como sorri enquanto fala, a justeza nos gestos, muito aprumada, a voz levemente estridente embora pausada, a impressão de minúcia na pronuncia dos erres alveolares... sinto automática empatia pelas pessoas que pronunciam os erres com a língua contra o céu da boca em vez do erre uvular (tipo escarro). E ela pronuncia o erre inicial na palavra "rigor" com a língua a vibrar no mesmo sítio onde pronunciaria o erre na palavra "trovoada", uma forma de pronunciar que infelizmente se vai perdendo (só algumas zonas mais rurais a conservam, a maioria de nós aderiu à influência francesa do rrrrrrr gutural).
Neste documentário, Lídia Jorge fala da sua infância em Boliqueime, da influência da mãe e da avó, do seu processo de escrita, do que distingue um romance enquanto obra de arte.
Descobri que escreve por verdadeiro prazer o que é cada vez mais raro ouvir de um escritor, pois para muitos, o processo de escrita é referido como uma experiência dolorosa e sofrida. Pelo contrário, Lídia Joge, quando está embrenhada num romance, diz sentir momentos de verdadeira felicidade, momentos em que atinge uma "concentração cruzeiro" tal que nem se apercebe da passagem do tempo. De cada romance que escreveu, lembra-se dos momentos essenciais da sua escrita, do que considera nevlálgico em cada livro. Não é coincidência que palavras como "fundamental", "essencial", "primordial", se repitam com alguma reiteração no seu discurso oral e escrito. São apenas a manifestação do seu espírito sintético e claro.
Dos sonhos de infância, lembra-se de pensar que, quando crescesse, gostaria de ter uma profissão que lhe permitisse transformar a sua vida numa longa tarde de Verão: uma tarde em que pudesse ler até serem horas de ir dormir.
Há ainda outra coisa que retive e que vou escrever para não me esquecer (acho que este blog deveria ter-se antes chamado Memória de Elefante-pensei isso hoje): Lídia Jorge considera que o romance se distingue enquanto obra de arte pelo facto de possibilitar um envolvimento que se prolonga no tempo. Um romance vai entrando na nossa vida interior, lenta e demoradamente, construindo-se à nossa frente, permanencendo de forma muito mais duradoira do que qualquer outra obra de arte. E isto deve-se simplesmente ao facto de demorarmos mais tempo a ler um livro do que a ver um filme ou a ver uma pintura.

Ruralidade


Percebi, ao ler este excerto d´O Vale da Paixão da Lídia Jorge porque é que regresso sempre ao sítio onde mora a minha ruralidade. Porque é que hei-de sempre rumar a Figueiró, à Pereira, à Agria.

"Ao contrário dos outros que foram e não voltaram, essa vai mas regressa, regressa sempre. Essa encontra-se presa ao pé boto de Custódio Dias, à mulher dele, às árvores dele, às galinhas desaparecidas, aos últimos ovos, às últimas portas da cancela, aos últimos melins e arreatas, está presa às últimas alfaias da casa. Não se pode salvar. Todas as cartas que vier a escrever serão sobre esses objectos mortos que jazem por terra, que estão pendurados nas paredes, que estão na rua à chuva, nos buracos luarentos dos palheiros, nas geringonças dos sarilhos dos poços, nos alcatruzes das noras, presa das mortes dos criados e das meninas que nelas se afogam, das avencas que fazem molhos verdes e se confundem com o dorso dos sapos (...) Ela está presa ao coração oculto das pedras. Ela nem vai, ela só regressa."

quarta-feira, agosto 16, 2006

Regra de Pareto ( I )

Vilfredo Pareto (só o nome!) foi um economista e engenheiro italiano e a ele deve-se uma constatação que, de tão certeira, ficou conhecida como a Regra de Pareto (ou dos 80/20).
A regra é de enorme simplicidade: 20% das famílias detêm 80% da riqueza. É esta a conclusão a que Pareto chegou. E o que tem de extraordinário é que pode ser aplicada a um sem número de realidades da vida (para o bem e para o mal):

- Será verdade que apenas 20% do que nos dizem as pessoas é responsável por 80% do que interiorizamos?
- Que 20% do que lemos num livro corresponde a 80% da nossa memória desse livro?
- Que 20% das mulheres/homens detém a atenção de 80% dos homens/mulheres?
- Que 80% dos erros que cometemos corresponde a 20% de causas?

Quando estiver à espera em filas, já sei com que me entreter: vou pensando em mais exemplos.
Promete-se uma sequela.

terça-feira, agosto 15, 2006

Romance & Cigarettes


Fiquei com vontade de pintar o cabelo de ruivo depois de ver este filme, Romance & Cigarettes de John Turturro.
Vive nele um verdadeiro frenesim musical, momentos em que nos sentimos entontecer como nas coreografias para as canções "Delilah" e "Piece of my Heart". Um bom roteiro de canções sobre o amor, algumas num kitsch que vai bem com o filme.
Take it
Take another little piece of my heart
now baby
Take another little piece of my heart
I know you will
Break it
Break another little piece of my
heart now baby
cause
you know you got it if it makes you feel good, so good
Este é também um bom motivo para ver James Gandolfini (conhecêmo-lo sobretudo da série Sopranos), Susan Sarandon e Christopher Walken.
Um filme com pontes em construção em pano de fundo (nos subúrbios nova-iorquinos) e aviões que rasgam o céu. O ambiente que reflecte e amplia o tema que para mim se revelou como fundamental neste filme: a luta contra a solidão.
Fica uma dúvida: Será mesmo verdade que as ruivas precisam de mais 20% de anestesia do que o resto das mulheres? "They feel more!" diz Angelo, o trabalhador metalurgico das pontes, fascinado por rabos grandes (interpretado por Steve Buscemi).

Histórias de Piratas

"Aonde queremos ir, vamos. É isso que é um navio. Não apenas quilhas, casco, convés e velas. Isso é só o que o navio precisa. Aquilo que um navio é, aquilo que o Pérola Negra realmente é, é a liberdade."
"Bring me that horizont."
do filme Piratas das Caraíbas-A Maldição do Pérola Negra, de Gore Verbinski, com Johnny Depp no magnífico Jack Sparrow.

segunda-feira, agosto 07, 2006

Lema de Vida

"Que nos interessa o que podia ter acontecido? Se ainda tanta coisa pode acontecer..."

Luísa Costa Gomes, Contos outra vez, ed. Cotovia

sexta-feira, agosto 04, 2006

Ler ou Reler?

Demorei algum tempo a formar uma opinão sólida sobre isto. O que é que dá mais prazer num livro que nos diz muito? A primeira leitura ou a releitura? O Abel Barros Baptista esteve no programa "Pessoal e ... Transmissível" e deixou-me mais uma vez a pensar nisto. Para ele, mais importante que ler é reler pois o desconhecido inerente à primeira leitura inquieta e inibe-nos de pensar. Um livro excelente será aquele que dá vontade de ler interminavelmente, colhendo sentidos mais profundos em cada abordagem. Na segunda leitura e seguintes, o enredo já não nos inquieta, adoptamos uma atitude mais tranquila, o que nos permite atentar nos pormenores realmente importantes.
Por mim, acho que o verdadeiro prazer só é possível na primeira leitura. Nunca esqueço uma entrevista que vi em que um Professor de Literatura Espanhola, quando questionado sobre que conselhos daria aos alunos que nunca tivessem lido o Dom Quixote responde: "Digo-lhes sempre: que sorte ... que inveja. A vida ainda tem para vos oferecer o prazer de descobrir o Dom Quixote!"
A releitura é um prazer consciente, intelectualizado, uma espécie de amor maduro. Mas a fruição alienante só é possivel no primeiro contacto com o livro e é essa impressão que nos arrebata e que perseguimos nas leituras seguintes, quase como se estivessemos a falar de droga (na verdade, alguns de nós não passam de "leiturodependentes" substituindo haxixe e heroína por livros do Eça, do Tolstoi e outros que tais). Por tudo isto, a memória de um livro pode fazer doer. Mas é essa dor nostálgica e saudosa que nos impele à releitura e nos faz querer recomeçar da página um, perseguindo, na releitura com o intelecto aquilo que a primeira leitura nos disse através do coração.

terça-feira, agosto 01, 2006

Teste