segunda-feira, fevereiro 26, 2007


Conhecemos pessoas, convivemos com elas diariamente, mais horas do que com a nossa família. Percorremos as mesmas ruas, todos os dias, os mesmos passeios, os mesmos carros nas bermas, os mesmos donos a passearem os cães, os mesmos putos a caminho da escola, a mesma senhora que vem com o saco do pão, o mesmo rapaz que abre a loja, o mesmo velhote à janela. E de repente, dá-se o corte abrupto, sete anos depois. Dói um bocadinho. Sentimo-nos perdidos, sem referências.
Hoje a minha vida tomou um caminho diferente. Conheci hoje pessoas que nunca tinha visto antes e que vou passar a ver diariamente, para trás ficam outras que dificilmente voltarei a ver. É a vida a obrigar-nos a mudar. Dizem-nos que é para melhor. Nós acreditamos.

Baixa lisboeta, sábado à tarde








Há alturas em que pensamos mais do que noutras, em que ansiamos por momentos de solidão onde possamos estar finalmente livres para ... pensar. Sem nada distrativo que nos impeça de dedicarmos todo o nosso ser a essa absorvente actividade. Como no último filme de Sofia Coppola em que Maria Antonieta pede permissão ao rei para se retirar e vai, em passinhos apressados e saltitantes, através dos amplos corredores de Versalhes, direita ao seu quarto onde se lança sobre a cama, finalmente livre para pensar (só este pequeno momento já faz o filme valer a pena).
Mas às vezes não é dos quartos que precisamos, é das ruas. Sábado passado, os meus pensamentos entardeceram com as ruas da baixa de Lisboa.

sábado, fevereiro 10, 2007

Tabu: A Story of the South Seas, de Murnau (1931)



Tabu é um filme belo. A preto e branco, mudo, filmado no Tahiti, utilizando os nativos como actores e ainda assim um filme belo, um filme para não esquecer, sobretudo a sequência final.
Matahi e Reri, dois nativos de uma ilha no Pacífico Sul apaixonam-se. É um amor proibido pois a rapariga, Reri foi escolhida para ser a virgem tabu, nenhum homem lhe poderá tocar e quebrar esta tradição significa morte. Contra tudo o que seria previsível, vemos Matahi enfrentar, com sucesso, tanto as forças da natureza como os tabus, entusiasmando-nos com esta secular visão ocidental de que o homem, através do amor, tudo vence, mesmo os deuses. Matahi é o homem excepcional, é o Gama dos Lusíadas, o Ulisses da Odisseia, o Aquiles da Ilíada. Mas é no final inesquecível que Murnau nos mostra, com maior elevação, a humanidade de Matahi quando este enfrenta a única coisa que o homem não consegue vencer: a morte. Nunca um filme me mostrou de forma tão clara o desespero, tal como o entendo, em cada braçada penosa de Matahi, o cansaço que o afastava do barco que fugia, veloz, levando-lhe para longe a mulher proibida e a sua felicidade. Há ainda um momento em que quase acreditamos que Matahi conseguirá: o instante em que num esforço sobrehumano, consegue agarrar uma corda solta no barco. Segue-se o plano revoltante de uma faca que a corta, deixando Matahi para trás, sem esperança, até que o vemos desaparecer na escuridão do mar, afogado. Mas apenas porque a morte fez batota, apenas por isso. Tabu ajuda-nos a entender a esperança e a coragem mas também a associar o quase ao desespero e à desistência.
"Um pouco mais de sol - eu era brasa/ Um pouco mais de azul - eu era além. /Para atingir, faltou-me um golpe de asa... /Se ao menos eu permanecesse aquém..."

O Velho e o Mar

"Era um velho que pescava sozinho num esquife na Corrente do Golfo, e saíra havia já por oitenta e quatro dias sem apanhar um peixe. Nos primeiros quarenta dias um rapaz fora com ele. Mas, após quarenta dias sem um peixe, os pais do rapaz disseram a este que o velho estava definitivamnete salao,o que é a pior forma de azar, e o rapaz fora por ordem deles para outro barco que na primeira semana logo apanhou três belos peixes. Fazia tristeza ao rapaz ver todos os dias o velho voltar com o esquife vazio e sempre descia a ajudá-lo a trazer as linhas arrumadas ou o croque e o arpão e a vela enrolada no mastro. A vela estava remendada com quatro velhos sacos de farinha e, assim ferrada, parecia o estandarte da perpétua derrota."
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Ernest Hemingway, O Velho e o Mar (tradução de Jorge de Sena)