domingo, setembro 17, 2006

"Faça Favor", um filme de Pierre Salvadori

Uma comédia inteligente, que esconde por detrás da sua ligeireza uma espécie de "teoria do beneficio".
Como sinopse, poderemos dizer que esta é a história de Antoine, chefe de mesa num restaurante em Paris, que certa noite, estando já atrasado para um encontro, opta por cortar caminho por meio de um jardim, dando de caras com um desconhecido que naquele mesmo momento se tenta enforcar. Impedido o suicídio, Antoine passa a sentir-se responsável pela vida de Louis, procurando, de forma generosa e abnegada que este volte a gostar de viver. E de tal forma é a sua entrega a esta causa que não podemos deixar de rir, quando, a páginas tantas, Louis (o ingrato) se vira para Antoine e o acusa de só pensar em si própro, de ser um egoísta. Apesar de tudo indicar o contrário, caladas as gargalhadas, começamos a pensar que talvez esta acusação não seja assim tão desprovida de sentido. De facto, por detrás do "tipo bonzinho" que é Antoine, há sobretudo o "tipo que não sabe dizer que não", o tipo que se prejudica para ajudar um desconhecido a retomar a sua vida mas que despreza a sua própria namorada (esquecendo-se do aniversário de três anos de namoro). Na verdade, apesar das evidências não o dizerem, o que move Antoine não é a atitude altruísta, é o amor a si próprio.
A propósito deste filme, lembrei-me das Memórias Póstumas de Brás Cubas (há livros que são uma espécie de enciclopédias: têm lá tudo), mais propriamente ao capítulo que Machado de Assis dedica à "Teoria do Benefício". Fica aqui um excerto:
*
"o prazer do beneficiador é sempre maior que o do beneficiado. Que é o benefício? é um ato que faz cessar certa privação do beneficiado. Uma vez produzido o efeito essencial, isto é, uma vez cessada a privação, torna o organismo ao estado anterior, ao estado indiferente. Supõe que tens apertado em demasia o cós das calças; para fazer cessar o incômodo, desabotoas o cós, respiras, saboreias um instante de gozo, o organismo torna à indiferença e não te lembras dos teus dedos que praticaram o ato."
Sobre o prazer do beneficiador escreveu Machado de Assis: "Primeiramente, há o sentimento de uma boa acção, e dedutivamente a consciência de que somos capazes de boas acções; em segundo lugar, recebe-se uma convicção de superioridade sobre outra criatura, superioridade no estado e nos meios; e esta é uma das coisas mais legitimamente agradáveis, segundo as melhores opiniões, ao organismo humano. Erasmo, que no seu Elogio da Sandice escreveu algumas cousas boas, chamou a atenção para a complacência com que dois burros se coçam um ao outro. Estou longe de rejeitar essa observação de Erasmo; mas direi o que ele não disse, a saber, que se um dos burros coçar melhor o outro, esse há de ter nos olhos algum indício especial de satisfação."