quinta-feira, agosto 17, 2006

Documentário sobre Lídia Jorge


No passado dia 31 de Julho, o Biography Cannel exibiu um documentário sobre a vida e obra da escritora portuguesa Lídia Jorge e durante 50 minutos fiquei colada à televisão.
Cada vez me acontece mais isto: gostar da obra de determinado escritor e detestar a pessoa de carne e osso. Tal não me aconteceu com Lídia Jorge. A figura não me desiludiu, nem pelo que disse nem pela impressão não verbal que me causou: a forma como fala, como se senta de costas direitas, rigorosa, na ponta de um sofá, como ocupa o espaço numa sala cheia de livros, como sorri enquanto fala, a justeza nos gestos, muito aprumada, a voz levemente estridente embora pausada, a impressão de minúcia na pronuncia dos erres alveolares... sinto automática empatia pelas pessoas que pronunciam os erres com a língua contra o céu da boca em vez do erre uvular (tipo escarro). E ela pronuncia o erre inicial na palavra "rigor" com a língua a vibrar no mesmo sítio onde pronunciaria o erre na palavra "trovoada", uma forma de pronunciar que infelizmente se vai perdendo (só algumas zonas mais rurais a conservam, a maioria de nós aderiu à influência francesa do rrrrrrr gutural).
Neste documentário, Lídia Jorge fala da sua infância em Boliqueime, da influência da mãe e da avó, do seu processo de escrita, do que distingue um romance enquanto obra de arte.
Descobri que escreve por verdadeiro prazer o que é cada vez mais raro ouvir de um escritor, pois para muitos, o processo de escrita é referido como uma experiência dolorosa e sofrida. Pelo contrário, Lídia Joge, quando está embrenhada num romance, diz sentir momentos de verdadeira felicidade, momentos em que atinge uma "concentração cruzeiro" tal que nem se apercebe da passagem do tempo. De cada romance que escreveu, lembra-se dos momentos essenciais da sua escrita, do que considera nevlálgico em cada livro. Não é coincidência que palavras como "fundamental", "essencial", "primordial", se repitam com alguma reiteração no seu discurso oral e escrito. São apenas a manifestação do seu espírito sintético e claro.
Dos sonhos de infância, lembra-se de pensar que, quando crescesse, gostaria de ter uma profissão que lhe permitisse transformar a sua vida numa longa tarde de Verão: uma tarde em que pudesse ler até serem horas de ir dormir.
Há ainda outra coisa que retive e que vou escrever para não me esquecer (acho que este blog deveria ter-se antes chamado Memória de Elefante-pensei isso hoje): Lídia Jorge considera que o romance se distingue enquanto obra de arte pelo facto de possibilitar um envolvimento que se prolonga no tempo. Um romance vai entrando na nossa vida interior, lenta e demoradamente, construindo-se à nossa frente, permanencendo de forma muito mais duradoira do que qualquer outra obra de arte. E isto deve-se simplesmente ao facto de demorarmos mais tempo a ler um livro do que a ver um filme ou a ver uma pintura.