sexta-feira, agosto 25, 2006

Uma das poucas coisas que sei de cor

Houve uma altura na minha vida em que sabia dizer de cor Avé-Marias, Pais-Nossos, Salvé-Rainhas, os Mandamentos e outras tantas coisas das quais já não me recordo sequer o suficiente para as conseguir nomear. Hoje em dia, especialmente em alturas de aperto (que é quando mais me apraz rezar), por muito que me esforce, não me consigo lembrar do que vem a seguir a "bendito é o fruto do vosso ventre: Jesus". Que a minha mãe não saiba. Ainda me lembro da lagrimazinha ao canto do olho, quando pela primeira vez me ouviu debitar à sua frente o Pai Nosso, sem um engano, num esmero de criança concentrada e devota. Era um orgulho, embora na verdade, de tanto repetir estas orações na infância, as palavras tenham acabado por perder a sua lógica, transformando-se num amontoado de sons ocos que repetíamos em coro, durante a Catequese. Talvez por isso se tenham evaporado tão facilmente da minha memória.
Acho até que se algum dia me vir num aperto dos grandes, daqueles que levam as pessoas a levantar os olhos para o céu e rezar, o mais provável é que me ocorra pensar em Deus, dizendo este poema, que é uma das poucas coisas que sei de cor:
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Casa
*
Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.
*
Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.
*
Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...
*
Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.
David Mourão Ferreira